segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Praça Pública - Semanal

Direito, liberdade e democracia «Sofia Galvão»

As suspeitas são graves e a investigação séria. No plano jurídico, reclamariam isenção, objectividade, rigor e tranquilidade. No plano político, sindicância atenta e maturidade cívica.

E, no entanto, a perturbação é absoluta e transversal. Desacredita-se a justiça, apodada de volúvel face a poderes ocultos. Os alegados factos convertem-se em atoardas de campanhas negras. O segredo de justiça estiola na rua. Surgem dúvidas sobre um eventual envolvimento dos serviços de informações e, em pleno contexto institucional, tal serve de pretexto a pretensas brincadeiras do próprio procurador-geral. No reverso disto, a comunicação social vai revelando diariamente novos dados da história. E as principais figuras do caso desdobram-se em intervenções mediáticas. O ambiente é esquizofrénico. Real e aparente confundem-se, num jogo de sombras de difícil decifração. Onde tudo acabará, ninguém sabe. Sabe-se apenas que o pior seria que não acabasse em lado nenhum.

Paralelamente, com outros pretextos, alguém fala em medo. Medo de falar, de tomar posição, de divergir, de levantar a voz. Numa denúncia que se repete e que paira sobre o espaço público. Há medo no ar. Trinta e cinco anos depois, há medo de incomodar, medo de ousar, medo de enfrentar.

Ora, Portugal tem fragilidades culturais que marcam, ancestralmente, a sua relação com o colectivo. Uma delas é uma imensa incultura jurídica. Outra é a sua difícil relação com a liberdade e a democracia. E daí a enorme gravidade do tempo que vivemos.

Ao contrário do que a esmagadora maioria das pessoas é levada a crer, a partir do desfile de desabafos que a comunicação social vai acriticamente veiculando, o Direito é um pilar absolutamente decisivo da nossa ordem social e política. Os direitos individuais e a cidadania são - sempre - o resultado daquilo que o Direito for e puder ser. Como serão sempre, também, o que as instâncias aplicadoras do Direito permitirem concretizar.

O Direito exprime uma partilha colectiva essencial de valores e de princípios. Num Estado de Direito, antes de mais, sobre a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos e a garantia dos direitos individuais perante aqueles poderes.

Neste radical assenta a nossa ideia de liberdade e de democracia. Não se trata, apenas, de conceber um indivíduo autónomo perante o poder, mas trata-se de conceber um indivíduo livre através da participação autónoma na vida colectiva. Um indivíduo capaz de uma intervenção plena e empenhada. Sem peias, sem constrangimentos, sem medo.

Justiça e política são, pois, o esteio de uma certa maneira de viver. E quem, como nós, tem ainda fresca a memória do tempo autoritário, deveria levá-las muito a sério. (Fonte:Expresso)

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