sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A simbólica rococó de um dos tectos do solar das Guedes

A entrada na Biblioteca Municipal Aquilino Ribeiro faz-se pela porta mais à esquerda da fachada principal do edifício. Transposta esta depara-se-nos um enorme tapete que ao jeito cortesão defende o chão granítico do solar. O tecto que se nos lobriga à destra, depois de subirmos os dois lances de escadas interiores que conduzem à entrada na sala de leitura, encontra-se pintado. Muito se disse acerca deste solar, uma referência para esta vila, mas muito pouca atenção se conferiu à interpretação da imagética e da simbólica presente nos tectos. Nada existe ao acaso. Se os dois tectos do solar foram mandados pintar pelos seus proprietários é necessário averiguar se alguma mensagem pretenderam transmitir ou indagar se eles nos permitem perceber características do pensamento ou da personalidade dos habitantes deste vetusto imóvel. Não é tarefa fácil e estará aí a explicação para o relativo anonimato de tão importantes motivos artísticos.

Começo por dizer que estes dois tectos, e sobretudo aquele a que me refiro concretamente, são dos mais, senão os mais, importantes vestígios da pintura rococó em tectos do concelho, e até da região. Além da composição central que ressalta à vista, onde figura um retrato de família, existem outras quatro que a cercam. Os quatro temas dominantes são a inocência, a alegria, a embriaguez e o amor.

INOCÊNCIA – Aparece uma figura num movimento gestual que certamente remete para a noção de inocência associada ao cometimento de uma falha inimputável. Só assim parece ter sentido o anjo que lhe está na retaguarda com uma espada, símbolo da justiça. Quererá tal composição alegórica significar que a inocência não deixa de passar pelo crivo da justiça.

ALEGRIA - Logo a seguir a à composição anterior aparece uma outra com seis figuras, entre cavalheiros e damas, em redor de uma mesa. O desgaste da policromia não deixa perceber que actividade aglutina os convivas mas tratar-se-á, é de supor, de algo que alegoricamente representa a alegria. De resto, a figura desproporcionalmente grande, na ilharga, que detém o quadro com a mensagem “Aleqria”, esboça um gesto quase imperceptível com o indicador para essa imagem. A alegria bizarra e a frivolidade exuberante são características profundamente rococós.

EMBRIAGUEZ – Uma das composições que não tem título é a que representa uma alegoria a Baco e a tudo o que ele representa. Uma enorme pipa que arca com uma figura extravagante de um desmedido nariz em corneta e uma mão empunhando um punhal de gume pronunciado, assistem a uma figura masculina, trajando à época com albardas de fidalgo, entre elas capa de folião e meias ao jeito de polainas, que extraí o líquido, vinho, por certo.

AMOR – Esta é, para mim, uma das mais importantes representações de todo o conjunto. “Omnia vicid amor”. Omnia teve diversos significados e um deles era a sua conotação com uma terra fictícia em jeito de paraíso. Omniah, a título de exemplo, é o significado árabe para o mundo prometido. Não é, porém, este o sentido de omnia no tecto do solar das Guedes. Omni, do latim omne, traduz a ideia de TUDO, TODOS. Omnimodo significa de todos os modos, omnicolor significa de todas as cores, omnipessoal significa de todas as pessoas ou para todas as pessoas. O prefixo omni foi usado desde tempos ancestrais, encontrando-se associado na Bíblia às três principais características de Deus: omnisciente (omnisciência – ciência de todas as coisas), omnipotente (omnipotência – poder de todas as coisas ou sobre todas as coisas, aquele que é todo poderoso), e omnipresente (presença em todos os lugares, presente em todas as coisas). Muitas outras são as palavras que utilizam esse prefixo, tal como Omnicracia (omni – todos ou tudo, kracia – governo) – governo de todos. De omnia vem também o vocábulo que ainda hoje se utiliza no Brasil, ómnibus, que significa veículo público, para transporte de todos e para quaisquer lugares. Por conseguinte, “Omnia vicid amor”, trata-se claramente de um verso de Virgílio que se encontra nas Éclogas, X, 69, que diz concretamente o seguinte: “omnia vincit amor”. Significa essa composição a personificação do amor, isto é, “o amor vence tudo”. É uma exaltação profunda do amor que remete para o ultrapassar de obstáculos. O amor aqui retratado é para o contexto epocal algo próprio do rococó, pois é em si um tema considerado profano. A composição central que assume as expensas do destaque retrata dois amantes ligados por esse sentimento profundo capaz de mover tudo, segundo o latino Virgílio. Ao lado, num plano inferior ao da figura que ostenta a frase encontra-se um careto que me parece significar a morte. Neste contexto, pretender-se-á advogar que o amor vence a morte ou perdura para além da morte.

Públio Virgílio Marão também conhecido como Vergílio ou Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), foi um poeta romano clássico, mais conhecido por três obras principais, as Éclogas (ou Bucólicas), as Geórgicas e Eneida - apesar de ter sido autor de vários outros poemas menores. Filho de um agricultor, Virgílio chegou a ser considerado como um dos maiores poetas de Roma. A referência à poética de Virgílio não de estranhar neste tecto. Em primeiro lugar porque o tema rococó do amor está ligado a comportamentos libertinos. O próprio Virgílio mantinha um amor sodomítico por dois escravos. Por outro lado, há toda uma série de links à cultura romana. Desde logo pelo uso do latim e depois por toda a decoração de floreados e figuras do domínio do fantástico que trajam à romana ou são figurações alegóricas de certos atributos de divindades romanas. A emblemática, figuração, e temática predominantes estão por conseguinte ligadas ao profano, com uma profusão de Roma clássica.

Tudo o que aparece representado neste tecto do solar moimentense está em profunda consonância com os motivos mais característicos da arte Rococó, os quais se direccionavam sobretudo para decoração de interiores e se focavam na despreocupada vida aristocrática e no romance alegre. Cenas galantes e da mitologia, bem como uma farta estilização naturalista do mundo vegetal em ornatos e molduras que podemos encontrar nas representações deste tecto, são profundamente rococós. Há uma tendência clara para romper com o domínio do religioso, o tema central e exacerbado do estilo de arte anterior, o Barroco.

Todo este espírito de libertinagem que encontra, neste período, profundas ligações ao pensamento racional esclarecido e iluminista setecentista leva-me a ver nestas pinturas e nos seus patrocinadores, o gérmen da corrente do pensamento liberal que haveria de fazer de Moimenta um alfobre de liberais.

Foi nos inícios do século XIX que o convento beneditino de N. Sra. da Purificação, vizinho do solar das Guedes, foi extinto por ordem do bispo de Lamego. São conhecidos os excessos das freiras de Moimenta pelo rapé (tabaco). Mas, na tradição oral perdura também a ideia dos excessos que as conventuais cometiam com alguns fidalgos proprietários dos solares erguidos de fronte e à ilharga. Poder-se-ão associar aos motivos libertinos dos tectos do solar das Guedes que figuram logo ali ao lado?

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