terça-feira, 1 de março de 2011

A Lei da Separação em Moimenta da Beira

O jornal bi-semanário viseense, Povo Beirão, fazia em 1913 um ponto da situação relativamente aos ganhos com 3 anos da recém implantada República, os quais eram: a democratíssima Constituição; a chefia do Estado entregue a um patriota; a repressão do analfabetismo com o ensino primário obrigatório, abertura de 460 escolas novas e criação de missões móveis; melhoria financeira notável; defesa nacional aumentada com o serviço militar obrigatório e um acréscimo no fabrico de armas; fomento colonial através de várias concessões comerciais e agrícolas, abertura de escolas, reorganização do exército e da marinha colonial; benefícios à agricultura através do policiamento dos campos e funcionamento de várias caixas agrícolas; protecção às classes operárias com o direito à greve, abolição da décima industrial, lei dos acidentes no trabalho, 8 horas de trabalho em alguns serviços; novos caminhos de ferro; garantias de filiação com a Lei da família; protecção à infância com a criação de tutórias e de muitas cantinas escolares; colocação de vários faróis nas costas de Portugal e das colónias; melhoria nos portos comerciais; garantias ao casamento através da Lei do divórcio; abertura de novas estações de correio; protecção à mulher através da sua colocação em repartições públicas; incitamento à economia particular; benefício aos inquilinos; garantias à propriedade com 141 aquartelamentos da Guarda Republicana com 3600 homens espalhados pelo país; turismo, através da criação de uma estação de propaganda e facilidades alfandegárias; progresso cívico popular com 186 comemorações anuais; abolição da pena de morte aos militares; e a libertação das consciências com a Lei da Separação. Portugal, como se vê, transfigurou-se. Muitas destas realizações foram continuadas, prevalecendo até aos dias de hoje, como foi o caso da lei da separação, sobre a qual me centrarei de seguida.

"A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português." Este trecho da Lei de 20 de Abril de 1911, que consagrava a separação das igrejas do Estado, resume bem o seu principal objectivo: a laicidade. Foi um produto do governo da República provisório de onde constavam os seguintes nomes: Joaquim Teófilo Braga, António José de Almeida, Afonso Costa, José Relvas, António Xavier Correia Barreto, Amaro de Azevedo Gomes, Bernardino Machado, Manuel de Brito Camacho.

Com influências da legislação estrangeira, nomeadamente brasileira e francesa, não deixava de se adaptar ao fenómeno português. Começava por reconhecer e garantir a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e estrangeiros residentes em Portugal (art.º 1.°), declarando em seguida que a religião católica deixava de ser a religião do Estado e que todas as igrejas ou confissões religiosas eram igualmente autorizadas (art.º 2.°). Sendo assim, o Estado deixava de subsidiar o culto católico, extinguia as côngruas impostas aos cidadãos, considerava livre o culto de qualquer religião, permitindo que as casas a isso destinadas tivessem a aparência de templo, não autorizava qualquer acto de culto fora das igrejas, perseguia os que tentassem impedir a livre prática religiosa ou ofender os clérigos e punia os que, pela violência ou ameaça, quisessem constranger alguém a praticar ou a não praticar actos de culto religioso. De seguida, a lei cometia os encargos com o culto e entregava os respectivos rendimentos (com descontos para a assistência pública) a corporações de assistência e beneficência existentes, tais como, misericórdias, confrarias, irmandades, etc. ou a associações que, para o efeito, viessem a constituir-se (associações cultuais), não podendo aquele realizar-se sem a sua existência. Os padres seriam inelegíveis para membros das juntas de paróquia e para as direcções, administrações ou gerências das próprias corporações ou associações cultuais. Todo o culto era livre, dentro de determinados horários, com restrições derivadas da manutenção da ordem pública e cometidas às autoridades civis (caso de procissões, toque de sinos, exibição de ornamentos e insígnias religiosas, etc.).

A Lei da Separação tinha um cunho profundamente revolucionário, porventura o mais revolucionário de toda a legislação republicana. Retirava ao clero o poder decisório e administrativo do culto, entregando-o aos cidadãos, corporativamente organizados, procurando, com isso, reduzir o papel clerical ao de mero executante de decisões de outrem. A Igreja Católica não ficava apenas empobrecida e nivelada com todos os demais corpos existentes no país. Ficava reduzida a uma situação de subserviência frente ao povo católico como jamais tivera no passado, pelo menos no passado português. Por outro lado, a lei assentava no princípio de que a propriedade dita eclesiástica era, na realidade, propriedade nacional posta ao serviço da Igreja, princípio igualmente revolucionário. Procurava-se, de facto, laicizar o Estado e abater, de uma vez por todas, o poderio eclesiástico.

Neste quadro, a Administração do concelho de Moimenta da Beira, em conjunto com a Câmara Municipal, passou a dispor de livros destinados a arrolar toda a parte administrativa relacionada com o culto religioso do concelho. É possível que a maior parte dos documentos que então se produziram se tenha perdido. Dos que sobreviveram até aos nossos dias destaca-se uma cópia do rol lavrado numa folha do Ministério da Justiça e dos Cultos com os bens requeridos pela comissão encarregue de promover e sustentar o culto católico na freguesia do Sarzedo. Dele constam 13 itens que exararam as propriedades requeridas. A este documento somam-se várias folhas rasgadas presumivelmente de um livro de registo das missas anuais realizadas no concelho. Terão chegado aos paços do concelho, integrando posteriormente o seu Arquivo, em virtude da lei separacionista. Procurava-se, por certo, ter uma noção precisa e exacta das missas que estavam a cargo das Juntas de Paróquia.

O referido documento é precioso pois dá conta de como se processou esta importante mudança no sistema político e religioso de Moimenta da Beira. Pena é que os restantes tenham sido destruídos por mãos ignaras.

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